quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Ode holocênica dos Campos Elísios – De Carmela para o Jardineiro

Era Día de los Muertos quando enterrei
Tuas linhas pequenas e níveas
E linho plantei sobre elas e sobre as flores
Antigas que estavam a vivificar
Os ruídos luminosos do longo fim de ano


Era Día de los Muertos quando cortei
Meus fios laranjas e lisos
E na nuca deixei vivo o cheiro de mar
De um outono frio de maio
Dissimulando os acordes de fim de ano


Era Día de los Muertos quando matei
A morte escura e cínica
E ancorei no velho cais de outra terra
Uma nova forte ventura
Para revelar algum navio de fim de ano


Era Día de los Muertos quando deixei
Apagar sem piedade
As chamas sanguíneas da lareira de tuas
Veias azuis de saudade
Antes de sentir o sangue do fim de ano


Era Día de los Muertos quando evitei
Numa rua deserta
Tua face marcada pela vida da minha
Vida então encoberta
Pelo acórdão lúgubre do fim de ano


Era Día de los Muertos quando amei
O holoceno sucumbido
E terminei todas as leituras maçantes
Para o Dia de Natal
Fortificar-se o mirante de fim de ano

sábado, 19 de dezembro de 2015

Carmela e o Jardineiro

Carmela:
Quando desatava os teus nós de solidão
E te amarrava nos meus olhos de tristeza
Você não me dizia tudo o que sentia
Quando te encontrava empinando
Mil pandorgas com os pequenos
O vento carregava meu aceno até você
Que não me compreendia
Hoje ainda canto que te faria um tapete
Branco de crochê e te leria Hilda nua
Te mostraria o vermelho dessa vida
Mas sem teus jornais no fundo do baú
Sem teu guarda-roupa
Só me resta uma varanda vazia
Mais uma vida sozinha


Jardineiro:
Na minha pele, teus cacos de vidro se perdem
Nos velhos livros, tuas fotos guardadas escrevem
Cartas a Ophelia esquecido comigo
Contigo, meus discos de folk, de blues e de rock
Noite bucólica – ao teu encalço me vejo
Descalça – no meu segredo te vejo
Sagrada – sob a luz de parasselênio
Cartas a Ophelia esquecido comigo
Contigo, meus discos de folk, de blues e de rock

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

As flautas da abóbada celeste

Não fossem as flautas da abóbada celeste, eu teria permanecido deitada ao lado das margaridas no Jardim. Entregaram-me novas e boas notícias, por meio de um som casual, sobre as leituras das madrugadas velhas. Talvez meus pés descansados desejassem correr para fora do horto, talvez desejassem mais. Voltei a deitar-me ao lado de minhas flores favoritas. Voltei, sim, e assumo ter feito isso para não o deixar só e adormecido, apenas com seu grande coração sentimental, sonhando com os versos do Garoto do Maiakóvski que li minutos antes de abrir meu coração covarde. Não poderia deixar minhas margaridas e meu Dionísio para trás. Já não poderia esquecer. Já não saberia correr. Minha razão, combatendo centelhas do corpo, disse-me para voltar a dormir. Adormeci. Admiti minhas fraquezas como jamais havia feito. Mostrei meus sinais de ausência. Abri minhas gavetas torácicas e deixei que guardasse seu sentimentalismo de bom sujeito. Torneio-o sujeito de minha oração. Pedi ao Cosmos com delicadeza, e as poeiras interestelares nos atingiram, e nos levaram à Nebulosa Laguna, e nos fizeram eternos.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O beijo de Nimue

Declarou-se árido e abandonou o lago alfa. Atravessou dois condados com sangue nos olhos. Matou o estado e chegou a Montana. Desconhecia os folclores trazidos pelos ébrios imigrantes. Suou. Sujeitou-se aos costumes. Casou-se com uma antropóloga e se fez objeto. Os anos se passaram e os traços marcaram sua face. Deixou um manuscrito ao lado da cama. Retornou ao lago alfa. O lago mostrou-se ômega. Entregou-se água. Despertou em outro universo. Foi beijado por Nimue.

Folclórica

um conto
esquecido
num folk
a estrofe:
estopim


então você
sem um porquê
jogou no mar
o livro antigo
que te dei
no Natal
sobre o Sal
e um amigo


o tempo secou
os seus pés
e os meus pés
Hefesto desejou


no espaço
da sua varanda
silenciou o som
de Sírinx, sim
talvez se chame Pã


e o suéter cinza
que fiz
com lã de amor
você doou
pro seu avô
em maio


mas os gestos
olhares inquietos
no jeito do amor
o beijo partido
no fim do amar
sua arma secreta
segredo ainda
guardado


no fundo do mar
um manuscrito
esquecido
um livro
você jogou
no fundo do mar
o fim do amor


o tempo secou
os seus pés
e os meus pés
Hefesto desejou

domingo, 25 de outubro de 2015

White Curd

This is the green horizon
This is the gray sky
This is my sad song


But it’s a perfect afternoon
Just this horizon
Just this sky
Just the white bird
And the white curd
Just me
My last sad song


This is the green horizon
This is the gray sky
This is my sad song


This song is for the lonely boys
For the lonely girls
For the single mother
No father


This is the green horizon
This is the gray sky
This is my sad song


This is my song for my strangers
My loved ones
My poet
Who died for poetry
My last sad song
To my mother
Mother Earth and to the Universe
And more, and more, more
Just this sky
Just the white bird
And the white curd
So sad

Visão púrpura

Visão púrpura: quando Orfeu reencontrou Eurídice nos Campos Elísios; quando Eurídice devolveu a Orfeu o olhar que ele havia perdido.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O inefável universo dos adoradores de chá

Havia resquícios de sentimentos dentro de seus livros. Havia resíduos de amores no interior de sua gaveta de meias. Sobejavam partículas de macróbias confusões sentimentais pelos corredores de sua casa. Ao lado de cinco pequenos vasos de margaridas, que estavam sobrepostos em uma estante de madeira de carvalho, existia um antigo espelho oval, no qual podia se ver refletida em uma remota imagem cândida. Silenciosamente lívida abriu suas portas para que seu Anjo-amor adentrasse musicalmente. Ele entrou em seu lar e caminhou sem pressa pelos cômodos, apagando os fragmentos de velhas consternações ignóbeis. De modo inefável, sem prescrições galênicas, ele preparou um chá de canela para que ambos pudessem absorver as doçuras do fado. Após navegarem pela magia líquida do chá, trocaram pacíficas palavras de devoção e recolheram-se à alcova. Durante o sono, sonharam juntos e acordaram para dentro. Reconheceram-se no interior de cada um. Nunca mais deixaram de sonhar.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

luz ao frodo

teus dedos
selados
nos meus


teus lábios
sanguíneos
nos meus


teus selos
sinetes
nos meus


teus pés
sambando
nos meus


teu sorriso
sereno
no meu


teu corpo
suado
no meu


teu porto
seguro
no meu


teu afeto
silêncio
no meu


meu apego
segredo
no teu


nosso amor
sufrágio
meu e teu

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sagrado: jornada de luz

A. escrevia centenas de artigos para atingir um antigo anseio. J. lia diversos livros ao mesmo tempo e se via no meio de uma multidão de seres escritos. A. e J. navegavam juntos. No interior de um barco furado, sonhavam imagens matizadas e engendravam uma nova terra para chamarem de lar. Enquanto a água atulhava o pequeno barco, os dois se amavam nos detalhes. A. cobria seus olhos claros com lentes embaçadas. J. mostrava seu olhar castanho através de lentes limpas e grossas. Sem toques. Sem vozes. Só vistas. Olhares se confundiam. J. e A. deixavam suas portas abertas e trocavam seus desejos por acordes de luz. Meditavam: amados. Descobriram o caminho e iniciaram a jornada de redenção. Dormiram anjos. Repousaram cosmos. Despertaram sagrados.

domingo, 11 de outubro de 2015

Amor: apocalipse redentor

O apocalipse havia começado e J. disse precisar novamente de um espaço subterrâneo. H. se cansara de subterfúgios. O diálogo foi contido. O sentimento estava tíbio. Não havia humanos vivos na cidade cinza. O vento chegara sem timidez. J. deixou Flaubert de lado. H. intentou uma farsa para afagar seu ego aborrecido pelo desamor de J. O abatimento se misturou com as rachaduras do chão nos dias apocalípticos. J. arranjara um sexo melhor para terminar sua existência terrena. H. não se conformava. J. poderia dividir seu corpo em dois e agradar H. e V. Um entenderia. Outro queria ser único. H. engendrou palavras de amor maquiavélico. J. ouvi-as em uma frase tragicômica. Negou-as. Deitou-se com V. No interior do tornado escatológico, H. cuspia seu amor em ódio. Amava até odiar, odiava até amar e não se perdoava por não deixar de amar. H. telefonou nos minutos finais com a intenção de humilhar J. H. não percebia que J. já sobrevivia entre uma cortina transparente de humilhação: J. não sabia amar por muito tempo. J. esperava encontrar seu amor redentor antes do final dos tempos. O tempo andava apressado demais para esperar pela redenção de J. H. perdia seu tempo tentando ferir seus amores criados. V. vivia sua leveza psicodélica fazendo cálculos e sujando suas mãos. Formou-se no céu um escrito em inglês (para ninguém ficar de fora): the end! J. correu oito quilômetros sem parar e, quando atingiu uma rua referta de árvores cinzas, avistou A. lendo Flaubert sob as folhas pretas. Escureceu.

Regresso: paradoxo temporal

J. disse precisar de um espaço subterrâneo. H. precisava de mais tempo. J. desceu os degraus até o sul. H. comprou duas caixas de medicamentos. Nos primeiros dias de outubro, as cores não surgiram como de costume no hemisfério sul. Nos dias seguintes, a cidade dormia em preto e branco. J. ainda estava no porão. H. quebrou todos os relógios que havia em casa. As calçadas do bairro eram cinzas. As árvores estavam secas. Ninguém compareceu ao funeral do prefeito. Alguns anos depois, sem marcadores de tempo, J. subiu os mesmos degraus, que o levaram ao sul, e saiu do recinto familiar sem dirigir suas pupilas a H. Ainda era outubro. Ainda não havia cor. H., que estava mergulhado em água com analgésico, se perguntava o horário. J. sentou-se em um banco cinza da praça negra. H. contava as facas e os garfos na cozinha. Alguns anos se passaram e não contaram o tempo. Outubro ainda doía. H. já tinha um filho. J. respondia por tentativa de homicídio. Numa tarde cinza, a cidade sem cor se viu coberta por um céu anil: J. foi absolvido. H. não precisava de remédios. D. completou onze meses de vida. Era setembro.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

perdida nesse
caos
nós
o avesso desse
céu
seu
meu pecado nu
lençol
sol
perdido nesse
caos
nós
dois extremos e

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Apoema

No meu pequeno pedaço de terra
que outrora foi desmedido e verde
ainda permanecem vivas as chagas
produzidas pelos coléricos do norte.
Neste corpo juvenil e neste espírito
ancião, expressivos, vigorosos, há
os traços dos pecados ditos sagrados
feitos pelos santos do eurocentrismo.
O meu sangue escarlate, os milênios
destruídos, as crianças recém nascidas,
as mulheres violentadas e os dízimos já
pagos ao sacro euronarciso vazam de
meus vasos nativos, humanos e divinos.
No meu peito aborígene, na minha face
terráquea, na minha alma cósmica, sem
divisão de vidas, eclodem sentimentos
inefáveis que cicatrizarão as feridas
ainda abertas neste pequeno pedaço de
terra que outrora foi desmedido e verde.

Apoema: aquele que vê mais longe.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Quando me vi entre Oneiros

Quando já não entrava vento por aquela parte entreaberta da vidraça da janela, quando não mais se ouvia os garotos, que bebiam conhaque com café do outro lado da rua, pedirem beijos às garotas que saíam da escola de balé que ficava em um antigo prédio cor de pêssego na esquina, quando já nem se via prédios velhos pelo bairro e muito menos bailarinas, foi que percebi seu sumiço de meu quarto. A janela ainda estava entreaberta e, na calçada do outro lado da rua, havia uma garrafa de conhaque vazia. Mulheres caminhavam apressadas, arrastando seus filhos pelos braços, enquanto homens subitamente atacavam os táxis que trafegavam acelerados. Meus livros, que já se mostravam amarelados, diziam dez anos. Talvez quinze. Acho que sumiços nos causam isto: a perda da contagem do tempo. Apenas esperamos. Sentamos. Fingimos ler. Fingimos ligar a tevê. Fingimos cuidar o trajeto dos ponteiros do relógio. Fingimos respirar. O tempo, por vingança, acelera quando fingimos não sentir, e profundamente os sentidos se afloram até nos darmos conta de que sobreviver não é o mesmo que viver. E a maioria apenas sobrevive. Lembro-me de que em uma noite qualquer você me disse para deixar minha mente vazia, pois assim não ficaria rolando durante horas pela cama e conseguiria dormir mais rápido. Talvez por isso tenho pensado que, se todos esvaziassem suas mentes e somente acumulassem memórias diárias, as coisas funcionariam de modo mais fácil. Quem sabe desse jeito, dissimulando e esquecendo, sentiríamos apenas uma vez na vida, e assim seria mais simples para viver: hoje não me recordaria daquilo que ontem senti e amanhã sentiria algo novo que apagaria o que foi sentido hoje. É engraçado: tentamos fugir de tudo o que nos torna vivos por medo de que isso venha a nos matar. Por exemplo: hoje, após uma década sentada em um canapé sem me dar conta de seu sumiço, resolvi devanear para tentar esquecer o que perdi quando percebi que o perdi, e assim continuo perdendo – perdendo-me. É que o caminho das fugas sempre me pareceu mais prático. Permaneço fugindo de mim em mim. Perco-me em mim.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Quando Quimera fugiu de Anatólia

Ao caminhar sobre velhas calçadas de lajota de uma florida rua do meu bairro, sem me preocupar com os vizinhos que retornam cansados do trabalho e com as crianças que brincam sob árvores, voo até o meu lugar mais bonito e me encontro entre pessoas azuis. Com roxos chapéus de magos, solitários arqueiros pedem-me poemas de amor sobre uma terra distante. Declamo sem pestanejar. O azul se torna mais anil. Seus arcos se transformam em violinos que acompanham algum canto élfico. Sou assim desde pequena: prefiro andar pelo teto e desbravar outros planetas a me prender a toda essa normalidade nauseabunda. Nas rodas de ciranda, eu era a menina que se dizia viking. Na roda de amigos, eu era a jovem que se intitulava Joana d’Arc. Na roda da vida, eu rodo ao contrário. Talvez por isso tenho de dormir sob um apanhador de sonhos. Quem sabe o motivo de minhas buscas esteja aí: nas quimeras. Para mim, o propósito sempre foi experimentar. Budismo. Xamanismo. Anarquismo. Comunismo. Faltam ismos neste mundo. Voo até encontrar.

Viver

Alguns espelhos refletiam nossa
eterna mocidade e outros apenas
acenavam com punhos de vidro.

Algumas portas se fechavam de
forma abrupta e outras somente
se abriam em um duro ranger.

Sua voz se infiltrava em meus
ouvidos como uma sinfonia
de inverno cinzento e infinito.

Meus pés deslizavam sobre os
seus lábios cálidos de queixas
e tremiam até o seu umbigo.

Sua face mórbida se encaixava
com exatidão entre os meus seios
onde dormia depois do amanhecer.

A aurora trazia o horizonte para
dentro da alcova e também um
caixote para o nosso segredo:

Morrer.

de.pois

Ele exibia expressões de arrependimento
de uma vida advinda de seu bovarismo
plenamente cego por seu ego frágil e só.
Apesar da exterioridade diminuta, que
dissimulava o arquétipo do século, ele
desconhecia a maioria dos livros e dos
filmes que valiam a pena. Seus medos
insanos – penosos e infantis – afirmavam
sua fragilidade de menino em busca de
autoafirmação. Deixo minha confissão:


Eu também fui assim quando tinha aqueles
dezenove anos, boy. Hoje sou outra. Crua.
Sou a mulher que nasci para ser, e jamais
abrirei mão de minha personalidade agreste.
Não precisa mais treinar frases pacóvias
em frente ao seu espelho de menino casto
nem chorar quando desabar no seu próprio
vazio. A vida flameja sob o firmamento e
o tempo enxuga seu líquido férvido com
as escolhas enxutas de cada indivíduo.


Preferências que por diversas vezes se
assolam em um destino frívolo de uma
limitada existência: sequer em palavras
remanescem metafóricos sentidos afoitos.
Nas frases cotidianas, a língua portuguesa
resplandece em meu esmalte vinho clássico,
declarando aquela sua mania cretina de não
isolar o vocativo com uma vital vírgula, boy.
Meus olhos míopes e astigmáticos – isentos
de misericórdia – proferem: je suis desolée.


Só para você ver: a questão – tão abrupta
proclama seu martírio infuso no melodrama
da coluna social de uma choldra jornalística.
Uma televisão multicolorida não afaga o
tormento oriundo de suas novelas mentais
e de seus hábitos inteiramente falidos.
Talvez algum versículo grifado em suas
pálpebras obscuras não permita que seus
intentos se realizem de modo vertiginoso
ou que cortem aqueles forçosos efeitos.


Sem epílogo remanescente:
Há o som de um trompete noturno.
Audível.
Silenciosamente musical.
Sensível.
Um espaço para partituras.
Repare bem em tudo o que não foi
escrito.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Dionísio: meu homem mítico

Propínquo aos castiçais de ouro,
sob auréolas afogueadas,
Dionísio, com seu professor Sileno,
sorvia aos goles o vinho
de um sagrado cálice pequeno.
Apresentei-me silente – como o
tempo insone –, cândida e aromática
para que, apesar da ebriedade, não
me percebesse trêmula e várias.
Talvez Dionísio, homem
mítico, admirasse a minha farsa
e me guiasse ao seu teatro na
encosta sul da acrópole de Atenas.

Arrebate

Repentinamente: um impulso.
Fim: recomeço.


domingo, 26 de julho de 2015

paredes beges

quando desatava os teus nós de solidão
e te amarrava nos meus olhos de tristeza
você não me dizia tudo o que sentia
quando te encontrava empinando
mil pandorgas com os pequenos
o vento carregava meu aceno até você
que não me compreendia
hoje ainda canto que te faria um tapete
branco de crochê e te leria hilda nua
mesmo que não me pedisse
eu te mostraria o vermelho dessa vida
mas sem teus jornais no fundo do baú
sem tuas roupas no meu guarda-roupa
só me resta uma varanda vazia
mais uma vida sozinha
paredes beges pintam a cena
no tempo dos ponteiros do relógio
e numa cadeira de madeira e de palha
meus velhos livros adormecidos
ficam os meus discos colados
no pó e pendurados numa parede
só até me sinto bem melhor
do que quando me vi numa falsa
tela de tevê sentada sobre uma mesa
sob um lustre amarelo condenado
algumas pessoas bitoladas jantavam
enquanto eu te escrevia do meu jeito
porque não te percebi de outro jeito


*música

quinta-feira, 16 de julho de 2015

sobre tapetes de crochê e tela de tevê

encaixo-me naquele tipo de
pessoas normalmente estranhas
que se sentem apenas solitárias
esquisitas como plutão quando
a sonda new horizons passou
deixando-o singular para trás

sinto-me fria como os granizos
que despencaram no teu telhado
e te perturbaram com o mesmo
frio que te tirou o sono quando
nevou no verão de nosso quarto
ocultando nossos tapetes de crochê

hoje ainda me escondo de tudo e
de todos sem descobrir o porquê
sem acender as minhas luzes ou
aumentar os meus volumes para que
não possam me ver nem me ouvir
imóvel em uma falsa tela de tevê 

pequeno pedaço de sentimento notívago

nestes gelos, que caem sobre
meus dedos e me congelam
as letras – que deveriam sair
e morar em algumas amarelas
folhas de papel –, observo uma
questão que surge subitamente
qual é mais frio: o inverno do ano
ou o inverno da alma? há resposta.

imóvel permaneço recordando
meus olhos que moram nos seus,
e confirmo que para mim sempre
foi tão difícil escrever sobre você,
porque você me dói em cada parte
deste corpo, e se demora em meus
pensamentos como aquela visita
que fica e nunca mais vai embora.

eu não sou uma pessoa normal
que sente os sentimentos, pois
esta estranheza me faz sofrê-los
sem ter um porquê. eu sofro o
amor, como sofro a saudade,
como sofro qualquer coisa
que me faça sentir você.
eu sofro você.

sábado, 27 de junho de 2015

Poema melancólico de alcova

Raios e trovões: o céu despenca, em uma fúria de sons e luzes,
como nunca se viu antes. Estamos protegidos por longas paredes
e muros altos. A tempestade bate à porta furiosa, porém aqui ela
não entra. Escuto teus ruídos como animais que estão a cercar sua
presa, cantos malditos por corredores vazios. A chuva molha a
vidraça, escorre contornando uma silhueta feminina, um reflexo
que espreita pela porta logo atrás de mim, um leve sorriso, um
movimento de mãos e uma taça vazia que anseia por mais vinho.


Invado teu recinto e teus olhos com a minha pálida face, com os
meus sôfregos passos, com a luz de parasselênio do pequeno castiçal
que carrego. Clair de lune flutua pelos corredores escuros em busca
de mais um cálice de vinho, bebida que mancha minha pele com sangue
e mancha teus macróbios lábios com versos negros de invernos cinzentos.
Rogo que o inverno de nossa alma vague, com o som de Debussy, pelo
interior deste castelo e que se esconda, em velhos baús abandonados, pelos
esquecidos aposentos das óperas outrora dramatizadas por insanos solitários.


O silêncio nasce antes do estremecer da terra. Na escuridão, guiado por
afagos da luz amarelada, das velas e do cristal das taças, reluz o doce amargo
do vinho. Uma visão: através da grande vidraça, as copas das árvores, em seu
balançar, dançam tomadas por seus pares, os impetuosos e delicados ventos.
“A última taça, minha estimada”, assim é oferecido. O último olhar lançado à
tempestade antes que ela cesse, antes que a música silencie, antes que as velas
se apaguem, antes que o dia nasça e, com ele, retorne o velho Sol brilhante.


Teus dedos já não tremem como antes e teus olhos já não sangram como
costumavam sangrar. Minhas mãos já não são gélidas e meus desejos
tornam-se cálidos. O vinho se faz insuficiente e o silêncio se transforma
em uma eterna melodia celta. Os pedidos nascem na garganta e desabam
ao estômago. As gotas da chuva presas nas vidraças voam direto às nossas
faces e tornam-se lágrimas pesadas de almas que foram olvidadas por um
deus desconhecido. Não há luz. Não há sabor. Não há silêncio. Há dor.
Por outra vez – e para sempre – há o vetusto medo de não ser o que se é.


Laís Grass Possebon & Eduardo Lima


Blog Utopia Cotidiana, por Eduardo Lima