domingo, 7 de junho de 2015

Cerejas Escuras

I
Dentre as venustas hetairas, com seus cabelos tingidos, olvidadas
em letras de livros, de escritos históricos, prima-se Aspásia, sofista
cortesã, nascida em Mileto, amante de Péricles, egéria de Sócrates.
Sábia, sabia gozar. Gozava de prestígio na sociedade de maridos de
mulheres que em seus lares adormeciam abstraídas com suas filhas.
Na face de toda menina transmutada em mulher refletia uma das três
fêmeas de Demóstenes, assim permanecendo até o instante em que
algumas pequenas pícaras se metamorfosearam em rebeldes medusas.


II
Todas mulheres, chamadas de bruxas, de putas, poetisas despidas de
preces, cruas, fugindo de catedrais góticas e confundindo os mortos,
que habitavam sepulcros sem luz, com fantasmas religiosos sem fé.
Joanas desciam à força de seus cavalos, cuspidas, surradas, afoitas,
madalenizadas dirigiam-se ao crucifixo sagrado no altar do perdão.
“Espero-te, por dentro, desnuda”, disse a primeira a sentir a brasa
cáustica nascida do ódio figadal dos piedosos crentes dos últimos
dias medievais do século XV do Calendário Juliano da Era Comum.


III
Mulheres nativas do solo latino corriam na mata enquanto seus pares
dormiam na morte. Capturadas por Quixotes, reclusas em moinhos de
vento, golpeadas pelo tempo eurocêntrico e pelo conceito dos brancos,
cobriam seus seios com o sangue escorrido sobre suas peles morenas
e no peito carregavam forçosamente a cruz missioneira, suportando o
peso de um dos maiores símbolos de opressão – ainda hoje louvado –
deste pálido ponto azul, chão de índias que já não dançam por chuva,
cultura e amor, mas que chovem em lágrimas refertas de corte e de dor.


IV
Femininas, sovietes, francesas, latinas, chinesas. Renascem todos os
dias. Marias, Cecílias, Carmelas, Sofias, Emílias. Adormecem todas as
noites. Mulheres sorrindo sem pudor, como quis Clarice, e despidas de
silêncio. Fêmeas, irmãs, amigas, mães, proletárias, independentes de
paixão. Demasiadamente vivas, sinteticamente duras, plenas de frases
sobre as linhas dos corpos, sobre as páginas da existência, sob o céu
surreal, e, apesar de apagadas dos escritos da Estória, sempre haverá,
na História, o sangue escuro de cada uma das vítimas do machismo.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário